Ao
invés de reprimir as consequências da perda do objeto, o melancólico aloja o
objeto ou coisa perdida em seu interior juntamente com os aspectos benéficos e
maléficos trazidos pelo mesmo; a poesia é o reflexo da expressão da união do eu
ao objeto perdido, de modo que, o poema, é a voz de um não-eu: fragmentação que
é resultado da identidade perdida (transformando-se em várias identidades pela
dispersão do “eu”).
Ser melancólico
é ser deserdado de algo não material e sem nome que não foi transmitido ou
herdado e não é, portanto, transmissível. Esse algo está além e mais profundo
que o “objeto” e guarda nossos mais secretos e profundos desejos e amores.
Como
deserdado, o melancólico é um ser desafortunado e infeliz pela distância que o
impede de reconquistar o “paraíso perdido”. “Entre
o gozo que aspiro, e o sofrimento / De minha mocidade, experimento / O mais
profundo e abalador atrito... / Queimam-me o peito cáusticos de fogo / Esta
ânsia de absoluto desafogo / Abrange todo o círculo infinito. / Na insanidade
desse gozo falho / Busco no desespero do trabalho, / Sem um domingo ao menos de
repouso, / Fazer parar a máquina do instinto, / Mas, quanto mais me desespero,
sinto / A insaciabilidade desse gozo!” (ANJOS, p.199). Por ser
definitivamente perdido, este “paraíso” (fonte de desejo e amor) se torna mais
distante do indivíduo de modo que este, sabendo-se numa situação sem volta
(irremediável), tenta buscar um meio de dominar a dor e o infortúnio e de
preencher o nada, o vazio de um espírito cansado de tanta luta percebido também
neste soneto de Antero de Quental no qual a busca pela sorte (bons tempos) é
vivida até a exaustão numa luta repleta de “ais” pelo deserdado, no entanto, ao
encontrar o procurado consolo ou ao adentrar no palácio da ventura, sua dor é
aumentada por deparar-se apenas com o silêncio, a escuridão e o vazio:
O
Palácio da Ventura
Sonho
que sou um cavaleiro andante,
Por
desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino
do amor, busca anelante
O
palácio encantado da Ventura!
Mas
já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada
a espada já, rota a armadura...
E
eis que súbito o avisto, fulgurante
Na
sua pompa e aérea formosura!
Com
grandes golpes bato à porta e brado:
Eu
sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos,
portas d’ouro, ante meus ais!
Abrem-se
as portas d’ouro, com fragor...
Mas
dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio
e escuridão – e nada mais!
O poeta,
ao mesmo tempo que depende deste “algo”, encontra enigmaticamente um meio de
estar em outro “lugar”. Escrevendo, o poeta domina este infortúnio e,
dominando-o, transforma-se / divide-se em “eus” que o permitem dominar os dois
lados (real / imaginário). Um desses “eus” (o “não-eu”) é o que se manifesta no
jogo da escrita. Então, se é um “não-eu” que se manifesta na ficção, o poeta,
ao adentrar nesse mundo fictício (atividade simbólica), encontra-se ainda mais
distante da “coisa”, desse algo perdido numa realidade distante (passado real).
O poeta vai para outro mundo que é oposto ao real (ainda que seja para
expressar uma realidade).
A voz
do melancólico é a voz de alguém inconsolado, inconsolável... O resultado desta
falta de consolo no passado (passado melancólico que não passa) é o presente
atormentado pela frustração passada, sendo esta insanável.
(Renata Nunes - Melancolia e Morte na poesia de Antero de Quental e Augusto dos Anjos)
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